Dworkin e Gadamer: Por que Dworkin não é um filósofo hermenêutico

(Veja também a postagem a partir da qual esta discussão foi gerada: consulte aqui.)

Devemos explicitar os pressupostos com que examinamos um autor e criticá-lo a partir dos pressupostos da tradição a que ele quis se filiar. Tendo em vista esta orientação, alguém poderia ficar com a dúvida, a partir da minha postagem anterior, sobre se as críticas que fiz a Dworkin seriam mesmo pertinentes. Isto porque alguém poderia ver Dworkin como se movendo na tradição hermenêutica, e não na tradição analítica. Para a tradição hermenêutica, de fato, a distinção "forte" entre normativo e descritivo como pertencendo a âmbitos distintos da razão e do discurso não faz sentido (embora eu esteja tendente a dizer que uma distinção "fraca" entre as duas tarefas segue existindo, do contrário não se conseguiria mais distinguir entre interpretação legítima e atribuição arbitrária de um sentido totalmente estranho ao objeto). Ela desaparece porque se lida com uma racionalidade que não é externa ao mundo e posta numa posição privilegiada da qual possa julgá-lo, mas, ao contrário, é uma racionalidade realizada no mundo, encarnada na tradição e na história de uma comunidade concreta, da qual cada nova geração só se apropria interpretando, isto é, mantendo e transformando ao mesmo tempo. Sendo assim, não há outra maneira de descrever que não interpretar, e interpretar implica assumir o pressuposto da racionalidade do pano de fundo consolidado e extrair (ou melhor, apreender e expressar numa nova versão) deste pano de fundo aquilo que o torna racional.

Ronald Dworkin (1931)
 Essa distinção "forte", em que o normativo fala do que deve ser, independentemente de que de fato seja, enquanto o descritivo fala do que é, independentemente de que deva ser, só se aplica para quem trabalha a partir da tradição analítica. Esta tradição considera que nem sempre o real é racional, considera que devemos distinguir bem claramente entre descrições da realidade que é que se podem considerar verdadeiras e representações de uma realidade que deveria ser que se podem considerar justas ou corretas. Não distinguir entre as duas dimensões é ou perder a força cognitiva do descritivo (pois estaremos assumindo como real aquilo que é apenas ideal) ou perder a força crítica do normativo (pois estaremos limitando o ideal ao que já é real). Isso não significa que o ideal seja definido de modo apriorístico, universal, atemporal ou inteiramente metacontextual. Pelo contrário, o que é o ideal será geralmente extraído das nossas expectativas, pressuposições e critérios reais, apenas que analiticamente depurados (no sentido de esclarecidos conceitualmente) e postos numa versão sistemática aceitável. Isso demonstra que nem o ideal é assim tão independente do real (porque é extraído de expectativas, pressuposições e critérios que existem no real), nem o real é assim tão independente do ideal (porque o real se estruturou como se estruturou a partir daquelas expectativas, pressuposições e critérios, ora satisfazendo-os, ora contrariando-os, ora transformando-os). Ideal e real se mostram, então, imbricados - mas jamais idênticos!, porque essa identidade seria, como já ficou claro, tanto a anulação do sentido cognitivo quanto do sentido crítico.

Feita esta distinção, resta saber: Dworkin é um filósofo hermenêutico ou um filósofo analítico? Bom, o valor que Dworkin concede à tradição, o modo como concebe a interpretação ao mesmo tempo como conservação e transformação, o regime holista e coerentista com que Hércules reconstrói o direito vigente com vista à solução dos casos difíceis etc., tudo isso pareceria apontar para a conclusão de que Dworkin é um filósofo hermenêutico, um legítimo herdeiro do pensamento gadameriano. Contudo, vou listar abaixo alguns motivos pelos quais penso que não seja assim, ou seja, alguns elementos da teoria de Dworkin que me convencem de que ele é, na verdade, um filósofo analítico que lança mão de algumas ideias gadamerianas, mas ainda assim interpretadas analiticamente e empregadas para solucionar problemas que só são importantes da perspectiva analítica. São eles:

- Dworkin não adere completamente ao pressuposto de que a única racionalidade de que podemos falar é aquela que se realizou na história de uma comunidade e que pode ser encontrada em sua tradição. Por exemplo, sua ideia de um ordenamento jurídico centrado nos princípios de igual respeito e igual consideração não é apenas o resultado da interpretação da tradição já consolidada da democracia liberal norte-americana; é, ao contrário, uma obrigação mínima que toda comunidade política tem que ser para com seus membros inclusive para que possa assim exigir obrigatoriedade do cumprimento das obrigações políticas. Isso é fixar um princípio moral atemporal e universal, que estará presente onde quer que existam indivíduos e comunidades políticas. Nada menos gadameriano. Outro exemplo: Em Dworkin existe o primado do justo sobre o bem. Na distinção que ele faz entre princípios e políticas (v. "Casos Difíceis", Cap. 4 de Levando os Direitos a Sério, e "Princípio, Política e Processo", Cap. 3 de Uma Questão de Princípio, sendo também útil perceber como a distinção ainda persiste em O Império do Direito na solução dada ao caso McLoughlin, no Cap. 8 - "A Common Law"), a questão é que os princípios encarnam exigências de justiça, enquanto as políticas correspondem "apenas" a metas sociais relevantes. Os princípios e as políticas, individualmente, são extraídas da tradição (ou seja, a tradição é que responde à pergunta "quais princípios e quais políticas existem e têm peso para nós?"), mas o primado dos primeiros sobre as segundas não vem da tradição (ou seja, não é a tradição, e sim o filósofo, que responde à pergunta "entre princípios e políticas, quais deles devem ter prioridade?"). Ao contrário, mesmo quando as decisões encontradas na tradição são majoritariamente favoráveis às políticas, sacrificando os direitos, é tarefa de Hércules identificar isso como um erro e excluir de cara estas decisão do corpo daquelas em relação às quais sua nova decisão terá que manter coerência. Essa ideia, dos princípios tendo prioridade absoluta por terem teor moral, dos direitos como "trunfos" de que o cidadão pode lançar mão para se contrapor e barrar o interesse majoritário, se baseia num liberalismo individualista, moralizante e com primado das questões de justiça. Novamente, nada menos gadameriano.

Hans-Georg Gadamer (1900-2002)
- Dworkin não obedece a uma das ideias básicas da hermenêutica de Gadamer, a saber, de que a interpretação não é e não se pode formular na forma de um método, mas, ao contrário, tem a ver com nossa experiência geral de ser no mundo. Pelo contrário, Hércules é um modelo de intérprete que fornecerá exatamente o referencial para um método de interpretar e de decidir no Direito. Este método se desdobra e se especializa conforme o tipo de decisão: É um para os casos de lacuna do Direito (como o caso Elmer), é outro para as decisões inovadoras da common law (como o caso McCloughlin), é outro para as decisões com base em leis recentes (como o caso do Snail Darter) e outro para as decisões com base na Constituição (como no caso Brown). Hércules não assume a função do intérprete gadameriano, que olha para trás e vê como os agentes tomaram suas decisões, reinterpretando-as à luz do pano de fundo das crenças e valores de uma tradição compartilhada por eles e mostrando que, no fim das contas, o que de início parecia irracional (por exemplo, a decisão do caso Plessy) era na verdade bastante racional à luz da apropriação da tradição de que aqueles agentes lançaram mão. Não, longe disso. Hércules assume a posição de intérprete transformador da tradição, de juiz do passado, do presente e do futuro, que declara quais decisões foram certas ou erradas, como as erradas teriam que ter sido decididas e como os casos ainda pendentes deveriam ser decididos. Entender a interpretação como método, fornecer um método concreto, julgar o passado, decidir o futuro, tudo isso é profundamente antigadameriano.

- Alguns acréscimos pontuais:

* Dworkin acredita num papel destacado da análise lógica puramente analítica (v., por exemplo, o artigo "Não existe mesmo nenhuma resposta certa em casos controversos", Cap. 5 de Uma Questão de Princípio), a mesma que Gadamer denunciava como meramente formal, redutora e incapaz de qualquer conclusão relevante em matéria filosófica.

* Dworkin acredita numa noção de objetividade cujo modelo é o pensamento epistemológico da filosofia da ciência (v., por exemplo, o artigo "Objetivity and Truth: You'd Better Believe It", Revista Philosophy & Public Affairs, Vol. 25, No. 2), a mesma que Gadamer disse que era incompatível com a hermenêutica filosófica.

* Dworkin acredita numa noção tradicional de teoria, no modelo clássico do pensamento analítico (v., por exemplo, o artigo "In Praise of Theory", Cap. 2 de Justice in Robes), aquela que Gadamer disse que tinha resultado do grande erro de cair nas metáforas visuais dos gregos e que tinha que ser abandonada.

* Dworkin mesmo afirma que enxerga como seus interlocutores os filósofos da tradição liberal de língua inglesa, e que se sente desconfortável no diálogo com a tradição alemã e francesa (v., por exemplo, o artigo "The Moral Reading and the Majoritarian Premise", introdução de Freedom's Law).

Verdade e Método (1960), a
obra principal de Gadamer
* O enganoso uso do conceito de "tradição": Em Gadamer, a tradição abarca todo o manancial de crenças, valores, normas, ações e produções humanas que funciona como ponto de partida e como matéria prima de nossa autoelaboração enquanto sujeitos interpretativos e de nossa precompreensão de todos os novos eventos, ações e produções que nos forem apresentados. É na tradição que a racionalidade se elabora e ganha forma concreta, não havendo concorrência, mas antes implicação recíproca, entre tradição e racionalidade. Ela não pode ser limitada a instituições nem pode ser criada artificial e arbitrariamente, mas é um processo de contínua autopreservação pela transformação. Já em Dworkin não é nada disso. A "tradição" é apenas a tradição jurídica. Mais ainda: É a tradição das decisões do passado, dotadas de autoridade, encapsuladas institucionalmente e dadas a conhecer não por algum tipo de phronesis neoaristotélica daquele que viveu sempre mergulhado nela, e sim por um método de consulta e interpretação textual típico da dogmática jurídica. Mais ainda: Esta tradição não tem força de autoridade porque se parte do pressuposto hermenêutico de que ela é a realização da razão no mundo, e sim porque toda comunidade de princípios precisa decidir levando em conta a integridade: isto é, não apenas o apelo moral da decisão, mas também seu ajuste institucional ao histórica das decisões do passado a respeito do mesmo tema. O que me leva a me submeter à tradição não é a convicção de que na tradição vou encontrar a resposta mais racional, e sim a exigência de que, no Direito, as decisões novas e as antigas entrem num acordo (mesmo que seja um acordo definido como coerência de princípio, e não como coerência de resultados).

* Contexto ético comunitário: Outra coisa a notar é que Dworkin, ao contrário de Gadamer, não valora positivamente o contexto ético da comunidade como critério para interpretação e tomada de decisões. Como todo liberal, Dworkin concebe o contexto ético como pluralista e vê com desconfiança a contaminação ética das decisões. A moralidade que ele não apenas endossa como considera obrigatória para a interpretação é uma moralidade pública política, a qual se confunde com as exigências de um Estado democrático de direito concebido em termos de proteção da liberdade e da igualdade. Aqui, mais uma vez, Dworkin não poderia ser menos gadameriano.

Por todos estes motivos, tenho que situar Dworkin dentro da tradição analítica da Filosofia. Acredito que a impressão, criada sobretudo pelo Cap. 2 de O Império do Direito, de que Dworkin se apoia na tradição hermenêutica é um equívoco, que se desfaz quando localizamos as afirmações que soam hermenêuticas no quadro mais amplo de sua teoria, de sua metafísica, de sua epistemologia, de sua filosofia moral e de sua filosofia política. Dworkin é um filósofo analítico liberal. O que há de gadameriano nele é a noção de interpretação construtiva, a qual, no entanto, é usada para resolver problemas da tradição analítica, e não situada adequadamente num pano de fundo todo ele hermenêutico. Há mais em comum entre Dworkin e, por exemplo, Hart, Rawls e Sen, do que entre Dworkin e, por exemplo, Gadamer, Ricoeur e Vattimo.

(Esta postagem não teria sido possível sem o profícuo debate que tive com o amigo Adalberto Fernandes Sá Junior, que com suas críticas me obrigou a refinar os argumentos da postagem anterior. Agradeço a ele pela disposição de ler o que escrevi, discutir pormenorizadamente, explicar-se e reexplicar-se pacientemente e acompanhar minhas tentativas de resposta.)

Comentários

Fernanda disse…
Nossa, gostaria de ter presenciado o debate que gerou a postagem. Ficou excelente, parabéns!
Caro André, parabéns pela postagem. Com clareza de argumentos foste ponto a ponto na necessária distinção que se deve fazer entre Dworkin e a Hermenêutica Filosófica. Há um grande engano em nossa academia jurídica na apropriação do Império do Direito. Essa postagem merecia um artigo numa revista jurídica para que mais pessoas pudessem tomar ciência do equívoco que veem cometendo.

Eu ainda destacaria que em Dworkin não há uma ontologia da linguagem. Gostei da remissão ao artigo sobre a diferença entre princípios e regras em que Dworkin faz uso da lógica para explicar sua teoria. Isso é totalmente antigadameriano! Espero que as pessoas leiam, principalmente as Escolas Jurídica de Belém.
Eu postei um comment. Mas caiu. Então repito.

Gostei muito da parte sobre o normativismo de Dworkin. Esse é um dos pontos que acho bastante diferentes entre ele e Gadamer.

Gadmaer é um aristotélico na filosofia prática que possui um cognitivismo forte, mas de natureza completamente distinta da de Dwlorkin. Aliás as noções de verdade e correção moral nos dois são completamente distintas. Gostei bastante que chamaste atenção para isso.

Ah....cognitivismo forte em Gadamaer é por minha parte.
Anônimo disse…
Professor, a fusão de horizontes entre auto-compreensao e compreensão do mundo, q exige certo grau reflexivo, não daria sinais da necessidade de um "juízo hercúleo", mesmo sendo rechaçada a tese de desvinculação de "sujeito-e-preconceito", como parece pretender dworkin e habbermas (em sentido não semelhante àquele), o q de qlq forma impediria guinadas bruscas no rumo das coisas e manteria o aprisionamento mais prolongado pelos sistemas?
Ps. Excelente abordagem! Parabéns!

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